O facto dos dois residirem na África do Sul poderia levar a pensar que tal facto não teria nada de extraordinário, mas o Necas vive em Joanesburgo e o João em East London, os dois lugares a centenas de quilómetros do Cabo. Para estarem presentes na corrida tiveram que se deslocar de avião, levando consigo as suas bicicletas. É claro que também levaram as famílias e aproveitaram o evento para uns dias de férias. Pelo exemplo deles podemos ter uma ideia da movimentação gerada pelos grandes eventos cicloturistas daquele país. Quarenta mil participantes é obra!!! Se pensarmos que as maiores corridas da Europa, a Quebrantahuesos e a Étape du Tour não vão além dos 7, 8 mil ciclistas, podemos imaginar a loucura que é organizar uma corrida para um tal número de participantes, a logística que isto implica e o nível de organização que se requer para que tudo funcione ás mil maravilhas. É uma experiência inolvidável, que um dia haverei de fazer. Não será fácil, porque trabalho em hotelaria, e as minhas férias são sempre no pico da estação baixa, lá para Novembro ou Dezembro, e sempre quando mais convém ao patrão. É difícil planear as coisas com a devida antecedência, e para tomar parte numa aventura destas há que pensar tudo muito bem, fazer a inscrição a tempo, reservar lugar no avião, combinar as coisas com o pessoal de lá para ter apoio logístico, etc.Em 2006 os referidos João e Necas juntaram esforços no sentido de me proporcionarem a possibilidade de estar presente na outra grande corrida do Mundo, a 94.7 Pick & Pay Cycle Challenge em Joanesburgo.
Com cerca de 35 000 participantes esta é a 2ª maior corrida do Mundo. Em tudo semelhante à outra, não tem no entanto o mesmo carisma, talvez por ser realizada numa cidade mais problemática e menos turística. Ainda assim um colosso de corrida...
Ia fazer 50 anos, e os meus cunhados, o João e a Gena ( a incrível Gena, mulher de armas, com um coração do tamanho do Mundo ) iriam juntar-se a mim e à minha mulher ( irmã da Gena, e igual a ela, grande companheira de aventuras e meu grande Amor ) em Joanesburgo, em casa do Necas e da Ronell. Chegámos 2 dias antes, vindos num voo de 12 horas desde Madrid. No avião levei a minha bicicleta desmontada e empacotada.
À chegada a Gena levou-me à loja do pai do Daryl Impey ( profissional da Team Microsoft, hoje na Barloworld) para que as bicicletas fossem montadas por um profissional. No dia seguinte o Necas levou-me a treinar com centenas de ciclistas, que se juntam todos os sábados num lugar pré-determinado para fazer uns quilómetros. Tive a oportunidade de mostrar o meu equipamento da Maia-Milaneza, o que me fez travar conhecimento com outros portugueses residentes em Joanesburgo e que se dedicam ao ciclismo. Á chegada juntam-se todos para um café e um bolo num centro comercial e o meu amigo apresentou-me aos profissionais da Team Microsoft, entre eles o filho do dono da Impey Cycles. À tarde fomos ao Centro Logístico levantar os dorsais. E, para meu espanto, aquilo era uma coisa do outro Mundo...Dezenas de balcões com voluntárias simpáticas para nos entregarem o dorsal e um saco com uma t-shirt alusiva à corrida, meias de ciclista, uma pulseira alusiva aos 10 anos da prova, barras energéticas, gel, etc,etc. Mais o chip para colocar na perna, para a contagem do tempo, já que com tanta gente, os participantes partem em grupos de 450 de cada vez...
Naturalmente que, com um nome complicado como o meu ( para eles...), não foi à primeira que deram com a minha inscrição. Mas a soberba organização logo resolveu o problema. Têm uma funcionária só para resolver os casos complicados.
Outra coisa que me deixou maravilhado foi a feira de ciclismo que organizam "como complemento" da corrida, e a funcionar junto ao Centro Logístico. Havia lá TUDO, mas mesmo TUDO o que se possa imaginar relativo ao ciclismo: desde bicicletas, roupa, acessórios, revistas especializadas, alimentação, etc. É uma excelente maneira de acabar o dia, envoltos em toda uma áurea de ciclismo, poder comprar "souvenirs" da corrida, poder experimentar uma Cérvelo com 3,5 kg, ver as últimas novidades do Mundo do ciclismo. E para rematar havia a possibilidade de tomar as refeições no próprio local, partilhando do clima de malucos das bicicletas.
E o grande dia chegou. Há um sistema de organização das partidas para que tudo funcione perfeitamente: 1º os profissionais ( entre eles o Hugo Sabido, que corria numa equipa sul-africana, a Team Barloworld ). Depois toda uma panóplia de categorias, profissionais femininas, júniores, tandems, handbikes, etc. Mais tarde os cicloturistas divididos segundo um sistema a que chamam "seeding", de tempos obtidos nesta e noutras corridas, de modo a evitar que os mais lentos se misturem com os mais rápidos, para que aqueles não prejudiquem os objectivos destes, que passam normalmente por obter um tempo melhor que o obtido noutras participações.
Assim, a corrida iniciou-se ás 5 da manhã, o Necas começou entre os primeiros amadores, por ter dos melhores tempos, depois foi a vez do João, e eu como não tinha "seeding" parti mesmo com os últimos de todos. Ou seja, ao classificar-me em 5 mil e picos tive que ultrapassar cerca de 30 mil ciclistas!!! O que, é claro, significa que muitas vezes queria passar e não podia, por a estrada estar completamente obstruída. E não fora esse facto talvez pudesse ter uma classificação melhor, para além da minha falta de experiência e da forma física muito primitiva que tinha então.Passei tanta gente que acreditei que tinha feito um tempo espectacular. Puro engano: os que ultrapassei eram simplesmente piores do que eu. A minha média foi bastante baixa, e hoje sei que posso fazer bem melhor, aliás já o fiz em outras ocasiões. Também, partindo de entre os últimos, não pude beneficiar de pelotões organizados onde me pudesse integrar, e assim poder rolar a uma velocidade mais elevada. Fiz a corrida sempre sozinho e sabemos que assim nunca podemos fazer uma boa média.
Durante o trajecto passei por gente com símbolos portugueses: camisolas da, imagine-se, Sicasal Acral, da Troiamarisco, do Boavista e até de Portugal. E muita gente com camisolas com o galo de Barcelos ( de um clube sponsorizado por uma cadeia de chicken piri-piri sul-africana, a Nando's ), mas também de clubes portugueses da África do Sul.
No local da partida a animação é fantástica: "cheerleaders" como nos jogos de futebol americano, palcos com grupos musicais, palhaços, cuspidores de fogo...
Durante o percurso continua a animação. Em cada curva milhares de pessoas a assistir, gente que se instalou ao longo do percurso para ver a corrida e fazer um churrasco. Gente com raízes nos mais diversos países com símbolos nacionais para estimularem os ciclistas da sua pátria. E participavam cicloturistas de 56 países!!! O que não seria de espantar se fosse na França ou na Itália, mas ali, num continente longínquo, o facto de indígenas de 56 países se terem deslocado para participar revela o quão grande é a expectativa por esta corrida.Pontos de abastecimento de tantos em tantos quilómetros, com água, cola, Energade, Fanta, tudo já em copos de plástico para não termos de parar. Sanduiches, bolos, barras energéticas, gel, frutos secos para quem desejar. Ambulâncias, postos médicos, massagistas a trabalhar ininterruptamente para curar as cãibras dos pior preparados. Oficinas de bicicletas para os azarados. E mais música, malabaristas, gente a fazer "bungee-jumping" de uma ponte sobre as nossas cabeças. E fotógrafos: cada participante recebe um autocolante para o capacete e outro para o guiador, com o número do dorsal. E a partir daí os fotógrafos conseguem retratar por diversas vezes ao longo do percurso CADA participante. É incrível como isto é verdade. Tirar a fotografia a 35 000 ciclistas, 5 ou 6 vezes em diversos pontos do percurso, identificá-los depois no laboratório, e enviar as fotos para casa de cada um é um trabalho só possível com uma ORGANIZAÇÃO a que não estamos habituados no nosso país.
A cidade pára por completo nesse dia. Sem espinhas. Desde as 4 da manhã até às 7 da tarde não há trânsito na cidade. Mesmo na autoestrada o trânsito é cortado. Nunca julguei ser possível correr de bicicleta numa autoestrada. Mas em Joanesburgo é possível. O povo compreende e aceita. A corrida é mais importante, e cada um organizará a sua vida de modo a viver esse dia com a cidade bloqueada. Passar na nóvel ponte Nelson Mandela de bicicleta foi outro momento marcante. Era uma coisa que nunca tinha imaginado.
À chegada contentores com gelo e bebidas energéticas. Tendas enormes com restaurantes de toda a espécie. E mais música, mais massagistas para recuperarem os que estavam em piores condições. E uma medalha para cada um que tivesse completado a corrida. E veículos especiais para levarem de volta aos parques de estacionamento os ciclistas e os seus acompanhantes, com atrelados especiais para levarem as bicicletas em perfeito estado. Nunca mais vi tal coisa na minha vida, só mesmo ali.
O vencedor foi quem eu tinha previsto e em quem havia apostado na véspera: Peter Velits da Konica Minolta, mais tarde campeão do Mundo de estrada sub 23. Acertar entre 35 000 concorrentes não é para qualquer um, modéstia à parte...
De volta a casa do Necas aquele companheiro já tinha um típico churrasco africano à nossa espera. Foi só tomar um banho, pegar na bejeca e começar a comer. Belo final para um dia memorável.
No dia seguinte partida para uma reserva de caça, onde iria festejar os meus 50 anos, e para Suncity, antes de um périplo por Moçambique. No caminho um telefonema da minha filha Cristina: "Pai, vais ser avô!". Haveria melhor maneira de festejar 50 anos?
E um OBRIGADO. À Gena, à Ronell, à Guito, ao Necas, ao João Felizardo, por me terem proporcionado dias tão maravilhosos.
Sem comentários:
Enviar um comentário