segunda-feira, 10 de maio de 2010

173 - COM OS FRACASSOS TAMBÉM SE ESCREVEM ESTÓRIAS.



Diz-se que dos fracos não reza a História. Mas este não é um blogue de Histórias, mas sim de estórias, e esta é a estória de um dia, que tendo sido um fracasso, desportivamente falando, acabou por se transformar numa bela jornada de prazer.

Anunciei no post anterior que iria participar no "Ascenso al Santuário de la Virgen de la Sierra" em Cabra, uma cidadezinha na província de Córdoba. A região tem belas corridas de cicloturismo, todas muito difíceis, cimentadas numa grande tradição ciclística, e esta seria a 20ª edição duma prova com pergaminhos. Inscrevi-me atempadamente, pedi a necessária autorização à Federação para correr no estrangeiro, reservei hotel numa aldeia chamada Zuheros, nas proximidades de Cabra, uma vez que nos hotéis da cidade não foi possível encontrar uma vaga para aquele fim-de-semana. A minha esposa tinha folga nos mesmos dias, e decidimos usar o pretexto do ciclismo para uma escapada de fim-de-semana.

Eis que durante a semana recebo um e-mail da organização a anunciar que, por falta de participantes, a cicloturista é adiada para Setembro. E agora? Fico em casa e renuncio ao hotel que já paguei e ao fim-de-semana com a minha mulher?

Há uma outra hipótese. Em La Puebla de Cazalla, a 150 quilómetros de Cabra, realiza-se mais uma etapa do 2º Circuito da Província de Sevilha. Só tenho que pedir que me aceitem, este ano não me inscrevi no circuito por não me sentir em forma, mas sou amigo do principal responsável pelo Circuito, o Chiqui de Fuentes de Andalucía, que prontamente me respondeu que, sim senhor, para mim sempre haveria lugar na corrida.

No sábado trabalhei com um horário que me permitiu sair mais cedo, a minha mulher foi-me buscar a Quarteira e partimos para Zuheros. Quase 500 quilómetros a toda a velocidade, a ver se não chegávamos depois da meia-noite, o hotel é uma coisa pequenita, não era suposto ter recepcionista nocturno, e ainda tínhamos que jantar.

Correu bem a viagem, chegámos a tempo de jantar.Um jantar muito porreiro, por sinal. Produtos da terra, cozinha típica, mas com "rafinesse". É que eu sou cozinheiro, e estas coisas interessam-me. Pedimos dois descafeinados, não consigo dormir se beber uma bica normal. Muitas vezes tenho mesmo que tomar comprimidos para dormir, sobretudo se estiver excitado por qualquer motivo. Depois ainda deu para uma voltinha nocturna pela aldeia, que se revelou admirável pela sua História e pelo bucolismo que só os lugares da Andalucía e do Alentejo sabem exibir. É assim uma coisa como Monsaraz ou Óbidos.

E ala que se faz tarde, que amanhã temos que nos levantar às 6 e fazer ainda mais 150 km até La Puebla.

Às duas da manhã ainda estava acordado! Tomei um Stilnox para dormir. O "gamela" da cafetaria deu-me de certeza café com cafeína, filho da "p..."!

Às três ainda não conseguia dormir, mesmo debaixo do efeito do comprimido. Que fazer? Tomar outro? Nunca tinha tomado dois, agora a ansiedade por não conseguir dormir, e saber que tinha que me levantar dali a pouco e ir fazer uma prova de ciclismo duríssima, com rampas que atingiam as cotas de 20%, estava a tomar conta de mim.

Decidi-me por uma segunda dose. Fosse o que Deus quisesse...

Adormeci. Os comprimidos lá fizeram efeito...

Acordei de noite, antes do despertador tocar. Não sei que horas eram. Era de noite e o despertador, marcado para as 6 ainda não tinha tocado. Na janela do nosso quarto um pardal chilreava incessantemente, anunciando que o dia estava prestes a começar. Levantei-me, fechei a janela, mas o "gajo" recomeçou a cantoria.

Não valia a pena deitar-me outra vez. A minha mulher dormia como uma santa, não há cafés nem aves canoras que a deitem abaixo.

Fui barbear-me e tomar um duche. Depois acordei-a para nos despacharmos. Enquanto se ultimava levei as coisas para o carro. Fizémos-nos ao caminho, mas estava decididamente de mau-humor e com a moral em baixo. Tinha-me mesmo apetecido era ficar no quentinho da cama, tomar um pequeno-almoço à maneira, conhecer a região e provar a gastronomia andaluz.

Para cúmulo começou a chover. E a perspectiva de ir fazer a corrida com chuva e muita montanha não era animadora. Não é que não tenha já feito muitas nessas circunstâncias, mas depois duma viagem tão grande num dia em que já tinha trabalhado e da noite sem dormir, tudo já era pretexto para desistir. Além do mais tinha outro problema: o medo de falhar!!!

Estou decididamente num limbo. Primeiro foi a operação às hérnias que me deixou com dores num testículo quando pedalo, sobretudo se me baixo na bicicleta. Correr com uns calções muito apertados ajuda, mas retraio-me sempre com medo da dor. Depois são as eternas dores nas costas, que me levaram a estar muito tempo sem treinar, conduzindo a um ganho de peso que não consigo derreter, nem mesmo com a muita corrida a pé que tenho feito. Deixei de fumar e o peso tornou-se num martírio, aumentei CATORZE quilos em poucos meses...O exercício físico não é suficiente para que eu consiga voltar ao peso que tinha antes. O Inverno que teima em não nos deixar, acentuou ainda mais a minha falta de forma. Estou pesado e com falta de treinos. Comprei uns rolos, mas pedalar naquilo é uma seca, se bem que sinta que são eficazes.

No ano passado começaram as agruras. Desisti pela primeira vez numa corrida em Guillena. Depois comecei a ter dificuldades em manter-me no pelotão, bastava um momento de distracção, ou uma ocorrência anormal, para perder o contacto com o pelotão. E quem anda nisto sabe que quando se perde o contacto com o pelotão a corrida está acabada. O esforço para reentrar é a dobrar, ficamos extenuados, e depois tudo se torna mais difícil, sobretudo se não estamos em forma. Antes, quando pesava 69 kg e estava em boas condições físicas, mesmo sendo fumador, nem me apercebia do que se passava na cauda do pelotão, aliás, ia lá atrás e voltava para a frente sem qualquer problema. Podia parar para urinar, fazer fotografias, vestir um impermeável, que nem sabia o que era sofrer. Não me passava pela cabeça do drama daqueles que vão no fim da corrida. Agora o medo apoderou-se de mim. Tenho medo de falhar, medo de não ser capaz. Sei que estou muito pesado e sei que vou sofrer para conseguir chegar ao fim. E qualquer desculpa me serve para dizer que não devo participar.

Apresentei-me em La Puebla completamente desanimado. E nem o reencontro com os amigos espanhóis, que me saudaram efusivamente me fez animar. O Juan Leal, o Manuel Carrasco, a Cristina, o Juan de Huelva, o Chiqui de Fuentes, os de Espartinas, os de Lora, todos me animavam mas eu, sob o pretexto de que iria chover, já me tinha decidido a não correr.

E foi com muita tristeza, e com um sentimento de frustração que os fui ver passar no Puerto del Madroñal, uma rampa com 16 por cento. Ali percebi que alguns devem estar piores do que eu, bem cheios de carnes, a pedalar aos "ésses" para conseguirem chegar ao alto, e no carro-vassoura já iam pelo menos uns 7 ou 8, ainda só tinham decorrido 17 km de prova, mas já com uma subida anterior de 14 por cento. Ao passarem por mim muitos me saudavam, mesmo com os bofes a saírem pela boca. Chiqui gritou: "coño, João, que nos has escapado.."

Rei morto, rei posto. Vamos para Córdoba curtir o fim-de-semana. Vão-se os anéis, fiquem os dedos. Fazíamos anos de casados, que se lixe. Vamos mas é comer umas tapas e visitar a cidade.

E que bela cidade!!! E que boa comida!!! E melhor bebida!!! Assim lá se vai a forma, mas também não se pode ter tudo, não é?

E um episódio curioso: algures no caminho para Córdoba, na estrada entre Osuna e Écija, num lugar chamado Aguadulce vejo lá ao longe um ciclista treinando sozinho. Parece-me reconhecê-lo, e vejo que ele olha intrigado para nós. E não é que nos conhecemos? Somos mesmo amigos e já aqui escrevi sobre ele. Chama-se Álvaro Prieto, mora numa aldeia das redondezas chamada El Rúbio, faz parte do Clube Cicloturista de Herrera, e foi, nada mais, nada menos, que o campeão absoluto do Circuito no ano passado. Este ano resolveu não participar, para poder planear a época para outras coisas, nomeadamente a La Sufrida e a Quebrantahuesos. No meio de nenhures encontrar um amigo assim, é um acaso incrível.
Vamos a ver se consigo ultrapassar os meus medos, pôr-me em forma outra vez e estar em Espartinas com a mesma confiança que tinha antes.

2 comentários:

  1. É um prazer acompanhar este blog ler estas "estorias" sempre com um bom humor.

    Valter Gomes - Tavira

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  2. Parabéns pelo seu blog.
    De peito feito, somos sempre grandes. O insucesso também entra no dicionário, não desanime.
    Forte Abraço

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